Hoje perdi o meu namoradinho de infância. Sabe aquele namoradinho de quando temos 5, 6 anos? Aquele que a gente acha uma gracinha, quer ficar de mão dada, fica perto o tempo todo e coisas assim? Eu devo meu time de futebol a ele. Queria agradá-lo e, para desgosto do meu pai flamenguista, o Alexandre era vascaíno. Vascaína eu sou fazem 30 anos.
Hoje recebi um telefonema da minha mãe para dizer que ele foi assassinado com 10 tiros. A sensação foi de viuvez do primeiro amor, ainda que faça uns 20 anos que não vejo o Alexandre e nunca me lembre dele.
Liguei para uma amiga para contar e ela se solidarizou comigo dizendo: “Nossa, deve ser horrível perder de forma violenta pessoas que fizeram parte da nossa história”. De forma espontânea respondi, “ah, mas eu moro no Rio de Janeiro e já perdi vários colegas e amigos.”
Neste momento me caiu a ficha. O que eu disse me cortou fundo.
Os estudiosos do fenômeno da criminalidade urbana - grupo no qual me incluo - estão sempre prontos para dizer quais são os alvos preferenciais da violência. São os jovens negros, em sua maioria com origem nas classes populares e envolvidos com tráfico de drogas (eleito como o grande vilão de todos os males da criminalidade violenta).
Eu sou branca, proveniente da classe média suburbana carioca, estudei em bons colégios do subúrbio, meus amigos e colegas vêm de famílias estruturadas, todos de classe média e nenhum deles teve relação com consumo ou tráfico de drogas, nem foram “pequenos marginais” na adolescência, Todos tiveram uma boa formação escolar.
Entre os conhecidos que perdi está um colega de colégio, encontrado amarrado na mala de um carro por causa de briga de namorada. Márcio sempre foi namorador (Mas isto não é crime!) e um ex-namorado ciumento foi o autor.
Outro colega foi queimado. Rogério sempre foi valente. Já havia até peitado um professor meio babaca, Um dia achou um mais valente que ele, e terminou numa lixeira, em chamas.
Alguns foram embora em acidentes de trânsito, e agora perdi meu amor de infância.
Nenhum deles envolvidos com drogas, com crime, com “má companhia” e todos vítimas de uma sociabilidade violenta.
Na semana passada, discutindo estatísticas criminais, conversei com uma amiga e disse “o crime tem lugar, vítima e autor preferenciais. Ele não atinge a sociedade como um todo. Não é assim como dizem, que estamos todos democraticamente expostos a violência. Alguns em função de suas trajetórias e oportunidades estão mais expostos que outros”.
Hoje não me sinto assim e meus “tios”, Márcia e Celso, que perderam seu filho, são sim, o alvo preferencial desta criminalidade violenta, ainda que estejam fora dos meus “perfis socioeconômicos e territoriais, vulneráveis à criminalidade urbana”.
Hoje, em respeito e solidariedade à perda deles e em respeito á Alexandre Barboza Libório, não consigo elaborar nenhum gráfico, mapa ou tabela sobre estatísticas criminais.
O assassinato do meu primeiro amor não pode ser só mais um registro na minha base de dados. Pelo menos hoje não.